Para refletir...

“Cuide-se como se você fosse de ouro, ponha-se você mesmo de vez em quando numa redoma e poupe-se.”Clarice Lispector

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Crônica

As características abaixo foram citadas por vários autores que tentaram entender a crônica enquanto estilo literário:

Ligada à vida cotidiana;
Narrativa informal, familiar, intimista;
Uso da oralidade na escrita: linguagem coloquial;
Sensibilidade no contato com a realidade;
Síntese;
Uso do fato como meio ou pretexto para o artista exercer seu estilo e criatividade;
Dose de lirismo;
Natureza ensaística;
Leveza;
Diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa fiada;
Uso do humor;
Brevidade;
É um fato moderno: está sujeita à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna.
A crônica, na maioria dos casos, é um texto curto e narrado em primeira pessoa, ou seja, o próprio escritor está "dialogando" com o leitor. Isso faz com que a crônica apresente uma visão totalmente pessoal de um determinado assunto: a visão do cronista. Ao desenvolver seu estilo e ao selecionar as palavras que utiliza em seu texto, o cronista está transmitindo ao leitor a sua visão de mundo Ele está, na verdade, expondo a sua forma pessoal de compreender os acontecimentos que o cercam. Geralmente, as crônicas apresentam linguagem simples, espontânea, situada entre a linguagem oral e a literária. Isso contribui também para que o leitor se identifique com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz daquele que lê.

Com Certeza


Diálogo entre um médico e o paciente:

- Continua sentindo muitas dores?

- Com certeza, doutor.

- Você tomou todos os remédios que eu lhe receitei na última vez em que esteve aqui?

- Com certeza. Mas, doutor, o que será que eu tenho, hein?

- Para começar, com certeza você sofre da Síndrome de Ofélia.

A Síndrome de Ofélia - só se abre a boca quando se tem certeza - disseminou-se nos últimos anos, em conversas, na mídia e até nas salas de aula. Trata-se do compulsivo "com certeza!", uma daquelas epidemias linguísticas difíceis de debelar, como a epidemia do "a nível de" e a do "tipo assim" (hoje menos perigosas) e a do gerundismo, que vai estar continuando a se difundir por mais uma década...

Faça o teste.
Convide um amigo para uma festa e ele, sem ao menos perguntar dia e endereço, afirmará: "Estarei lá, com certeza!".

Pergunte a um político se está preocupado com o tema da educação. Sua resposta infalivelmente será: "Com certeza!".

Ligue a TV, escolha qualquer programa em que todos falam sobre o que pouco entendem, e logo ouvirá alguém dizer: "Com certeza!".

Essa estranha "certeza" reaparece nos diálogos em que a pessoa, querendo concordar com a nossa tese, responde de bate-pronto, mesmo sem ter pensado ou sequer ouvido o que lhe expusemos: "Com certeza!".

"Com certeza" tornou-se a forma preferida de iniciar toda resposta, ou de apenas suprir a absoluta falta de respostas. Preste atenção.

Estive na Bienal do Livro neste final de semana e pude constatar que a praga atinge até nossos escritores. Entrevistando um autor, perguntei-lhe:

- E o seu livro? Vendendo muito?

- Com certeza. Já se foi metade da tiragem.

- Pretende dar continuidade ao tema?

- Com certeza. A gente não pode parar de escrever, não é?

- Com certeza...

Este "com certeza" pega e não desgruda. E não faz discriminação de idade ou classe social!

A síndrome pode ser adquirida por falta de higiene linguística. Remédio? Tomar consciência do cacoete verbal e ampliar o vocabulário, estudar, ampliando também nossa visão de mundo.

(Gabriel Perissé) 

Felicidade Clandestina - Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
       Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com sua letra bordadíssima palavras como “data natalícia” e “saudade”.
      Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingan­ça, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de ca­belos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me subme­tia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
     Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía as Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
     Era um livro grosso, meu Deus, era um livro pra se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
     Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
     No dia seguinte fui à sua casa, literalmente cor­rendo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem cai: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nem uma vez.
      Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
      E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefini­do, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivi­nhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mes­mo, às vezes eu aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.






      Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
     Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas, houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A se­nhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
       E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser.” Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
       Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão.     Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sem­pre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
        Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só pra depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...         Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
        Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
         Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.

Análise da leitura


1. Os três primeiros parágrafos formam a introdução do conto lido. Nele, são apresentadas as características das personagens da história.

a) Como é feita a caracterização das personagens: de modo superficial ou de modo minucioso, aprofundado?

b) Que aspectos dessas personagens são ressaltados?

2. Embora a filha do dono da livraria não tivesse muitas qualidades, algo a fazia superior aos olhos da narradora. O que era?

3. Observe estes trechos do texto:
  • “Mas que talento tinha para a crueldade.”
  • “Ela toda era pura vingança”

Por que, na opinião da narradora, a outra menina tinha talento para a crueldade?

a)      porque as outras meninas eram “imperdoavelmente bonitinhas, esguias,altinhas e de cabelos livres”;
b)      porque gostava de humilhar as coleguinhas que adoravam de ler, já que seu pai tinha uma livraria;
c)      porque sua mãe a ensinara a ser assim;
d)     porque tinha inveja das colegas do colégio.

4. A posse do livro “Reinações de Narizinho” possibilitou `a menina exercer sobre a narradora uma “tortura chinesa”, num jogo infindável de promessas e mentiras.
 I. Que características da menina e da narradora se observam nessa relação?

 II. Que consequências físicas resultam dessa tortura para a narradora?

a) insônia
b) olheiras
c) dor de cabeça
d) pés inchados.

5. Um dia, a mãe descobre o jogo que a menina vinha fazendo com a narradora.
a) O que parece ter chocado mais a mãe nessa descoberta?

b) O que a decisão da mãe representou para a narradora?

6. Nos três últimos parágrafos do texto, a narradora tem atitudes que surpreendem.
a) Por quê?

b) Por que a narradora fingia que não sabia onde tinha guardado o livro e depois “achava-o”?

7.Que características do conto psicológico encontramos neste texto?

Colocação Pronominal


COLOCAÇÃO PRONOMINAL

Discute-se na letra da música - “ EU SEI QUE VOU TE AMAR “( Tom Jobim e Vivícius de Moraes ) a melhor colocação do pronome TE no trecho:

“Eu sei que vou te amar

Por toda minha vida eu vou te amar ...”

O correto seria que o pronome viesse após a conjunção integrante que, já que esta conjunção é palavra atrativa. Ficaria : Eu

sei que te vou amar.

A outra forma é colocar o pronome TE após o verbo . Ficaria : Eu sei que vou amar-te .

No entanto, o professor Pasquale acha que ficaria estranho Tom Jobim e Vinícius cantarem:

“Eu sei que te vou amar

Por toda a minha vida

Eu sei que vou amar-te ...”

Na colocação do pronome muitas vezes vale a eufonia apesar de a eufonia apesar de a norma culta nem sempre abonar essas formas.


Pronomes oblíquos átonos:

ME - TE - SE - LHE - LHES - O - A - OS - AS - NOS - VOS

Aqui no Brasil, muitas vezes o professor diz ao aluno: “Não é possível começar a frase com o pronome me”. E, se o aluno escreve na redação: “Me disseram que...”, leva uma bronca do professor, que não explica ao aluno de onde vem essa história.

O que acontece é que a língua portuguesa “oficial”, isto é, o português de Portugal, não aceita o pronome no início da frase.

Eles falam “Disseram-me...”. O problema é que essa colocação pronominal não tem nada a ver com a nossa maneira de falar, a nossa sonoridade. Nós temos a nossa maneira de usar o pronome, e não há por que lutar contra isso. É como na canção “Vento Ventania”, do grupo Biquíni Cavadão:

“Vento, ventania, me leve para as bordas do céu, pois vou puxar as barbas de Deus.

Vento, ventania,

me leve pra onde nasce a chuva,

pra lá de onde o vento faz a curva,

me deixe cavalgar nos seus desatinos, nas revoadas, redemoinhos...”

O mesmo grupo tem outra canção que também é um bom exemplo da nossa maneira de colocar os pronomes na frase. A canção é “Timidez”.

“Toda vez que te olho, crio um romance.

Te persigo mudo todos os instantes.

Falo pouco, pois não sou de dar indiretas.

Me arrependo do que digo em frases incertas...”

Em português de Portugal isso não poderia ser assim. Precisaria ser “Leve-me”, “Deixe-me”, “Persigo-te”, “Arrependo-me” e assim por diante.

É importante lembrar que a nossa forma de usar os pronomes, no começo da frase, está oficialmente errada. No cotidiano, com os amigos, na vida diária, podemos falar à nossa maneira. Mas numa prova de português, num vestibular, num concurso, devemos escrever o pronome sempre depois do verbo. Console-se, são coisas da nossa língua portuguesa...

(Nossa Língua Portuguesa)